Aqui fica um belo texto, três belas imagens. Espero que gostem tanto como eu.
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Este texto é a minha visão do percurso do povo alemão rumo à queda do
muro de Berlim, passando pelos anos de divisão imposta no climax da
guerra fria. Estive a estudar em Berlim durante algum tempo, e senti a
forma como o povo alemão vivenciou esta fase da sua História.
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O spray vaporizado da queda de água projectava um ténue arco-íris no
ar rarefeito daquela manhã montanhosa. O som da água precipitada de
tamanha altura era de tal forma ensurdecedor que nem o próprio
pensamento era audível. A vegetação florescia densa e húmida ao longo
das encostas que ladeavam o curso de água vociferante.
Ali estávamos, após dias de catanadas exaustas nas densas folhagens
que se opunham ao nosso progresso. Ali estávamos, perplexos diante da
absurda monumentalidade daquela força da natureza, ponderando como
poderíamos ultrapassar mais este obstáculo, sob pena de nos desviarmos
quilómetros da rota previamente traçada.
Não vamos trepar esta merda, disseste-me laconicamente.
Quem chegou até aqui consegue dar um jeito, respondi-te com o sorriso
desafiador que te faz embarcar em quaisquer loucuras que te proponho.
A ligeira inclinação da encosta, permitiu uma ascensão menos difícil
do que prevíramos, mas após duas horas de ostensiva ridicularização da
lei da gravidade, convencemo-nos a pernoitar num socalco com espaço
suficiente para que ambos nos deitássemos lado a lado. Sentámo-nos
precariamente naquele beiral caprichosamente colocado e olhámos a
paisagem que até aí estava no segredo das nossas costas.
Estávamos mais perto do céu do que alguma vez imagináramos.
Acordámos revigorados pelas gotas de água da cascata que nos começaram
a cair em cima assim que a aragem mudou de direcção. Percorriam-nos
arrepios de frio que nos forçaram a erguer em desequilíbrio daquele
beiral apertado onde havíamos dormido seis horas. Olhámos para baixo.
Um manto de espessas nuvens cobria o mundo abaixo de nós. Até
poderíamos saltar, na certeza de sermos amparados por aquele colchão
branco e fofo. Olhámos para cima.
Restavam subir metros infindáveis de rochas lisas e húmidas, salteadas
de estreitos degraus que serviam de apoios à imensa escalada.
Reiniciámos a subida com energias reforçadas pelo merecido descanso e
conseguimos trepar rapidamente aquele muro virgem, nunca antes violado
pela eterna ânsia de sonhar que todos os homens possuem. Alguns metros
ao lado de nós, milhões de litros de água espumosa sucumbiam à lei da
gravidade, mergulhando num salto livre, voluntário, como se de um
poeta apaixonado se tratasse.
Eis que nos aproximávamos do último beiral, aquele que nos permitiria
colocar os pés em terreno firme, onde não teríamos mais que olhar para
cima, mas para a frente. Com um resoluto movimento cumprimos a
hercúlea missão e deitámo-nos ofegantes olhando o céu azul, banhados
pelo sol implacável na ausência de atmosfera respirável.
Sucumbimos ao cansaço, ao ar irrespirável e à maravilhosa
incredulidade perante o acto de amor que acabáramos de levar a cabo.
Perdemos os sentidos.
Abraçados.
Sem nos preocuparmos em ver o novo mundo que alcançáramos.
Era já noite quando recuperámos os sentidos.
No corpo sentíamos as vergastadas dolorosas do cansaço físico e
psicológico e com esforço erguemo-nos para poder então contemplar a
próxima etapa do nosso caminho.
Voltámo-nos e rapidamente percebemos que este era um mundo novo... uma
torre de pináculo redondo cuja fértil imponência dominava o horizonte,
projectando uma sombra fria na planície oriental da paisagem sem
protuberâncias, exceptuando as densas florestas que se percebiam na
neblina distante. Aquele cenário estendia-se para além dos limites da
visão humana, dando a sensação que ali a curvatura do mundo era ao
contrário.
De entremeio, uma longa avenida ladeada de edifícios de arquitectura
homogeneizada, como que projectados por uma mesma mente portadora de
uma imaginação tão rica quanto perversa. Ao longo da avenida gasta
pela imperdoável erosão ideológica, corriam as águas que mergulhavam
na cascata e cujo som nos fazia ainda vibrar os pés em contacto com o
solo.
A incontrolável curiosidade de conhecer aquele mundo novo fez-nos
prosseguir, sabendo agora que tudo estava ao nosso alcance. Nada mais
restava desenterrar, o resto do mundo estava ali por descobrir. Tudo o
que ele encerra de bom e de mau, estava à distância dos nosso braços,
bastando-nos apenas querer para poder ter.
Havíamos rebentado os grilhões da separatista estupidez e derrubado o
muro da discórdia que durante anos - que pareceram décadas - nos
separaram do resto do mundo. E temerariamente aceitámos tudo o que
esse mundo nos queria proporcionar agora.
Porque foi assim que quisemos.
Porque esse era o nosso inabalável direito.
By: Ricardo Garcia
(Obrigada Ricardo, o Mural do Leitor não podia ter começado melhor)
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