O furador
E lá vinha mais uma comemoração pessoal imposta pelo calendário dos outros. Bem lutava contra elas, as impostas, mas sabia que, mesmo que se esforçasse no dia-a-dia, quando se conseguia disciplinar para tal, havia sempre um gostinho residual na boca, à força da avalanche televisiva, radiofónica, do escaparate das lojas e da restante máquina de criação de necessidades onde elas não existem, que impunha algo de diferente, por muito parecido que fosse com outros dias não esperados. Felizmente, a mente feminina que não se consegue alhear da hipnose colectiva é a mesma que liga o interruptor logo que percebe um pequeno gesto mais afectivo. Daí que, enquanto furava um conjunto de folhas para arquivar, se tenha recordado da pergunta mais feminina de todas e tenha arquitectado, perdão, engendrado, que a acção seria muito mais executiva, um plano infalível. Agarrou no lápis, que é como quem diz no rato do computador e desenhou um punção para executar na serralharia. Desenhou uma matriz com a mesma forma e pediu ao seu mais dotado mecânico que a montasse no furador. Foi, então, comprar uma cartolina vermelha, que se entreteve a recortar enquanto sorvia um café em pequenos goles. Abriu o frasco de perfume comprado para o efeito e juntou-lhe todos os pedacinhos recolhidos.
Quando o momento chegou, colocou o embrulho em cima da mesinha de cabeceira e esperou pela pergunta fatal: “Gostas de mim, gostas?”. Sorriu e respondeu “Sim” como habitualmente, matreiro, à espera da pergunta disparada logo de seguida: “Quantos ...”. Desta vez não a deixou terminar a frase. Calou-lhe os lábios com o dedo indicador, pegou no frasquinho ainda embrulhado e respondeu: “Tanto quantos os corações dentro deste frasco”.
Acertou na reacção dela. Só não previu que o perfume se evaporaria antes do final da noite.
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